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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Os homens das multidões - parte 1

Pegamos o metrô e percorremos as conflituosas relações entre as 300 mil pessoas que esbarram suas histórias diariamente nas plataformas e vagões da Região Metropolitana do Recife.

Créditos: TV Globo/Reprodução

Uma passageira entra no metrô correndo, esbaforida, com sacolas da C&A e um pacote de amendoim recém-comprado na rampa de acesso à Estação Joana Bezerra. O rímel mancha o rosto alongado com expressão de cansaço. A entrada súbita faz com que as sacolas batam no braço de uma outra passageira, o suficiente para dar início a uma discussão, logo engrossada por outros usuários. Na estação de Alto do Céu, a moça-vetor da confusão desce e segue seu destino, não sem antes fazer um gesto agressivo para a “adversária”. Lá dentro, o bate-boca continua, até o desembarque final, em Camaragibe. As rusgas entre os passageiros são só um dos capítulos do calhamaço de situações-limite que se desenrolam entre os usuários e funcionários das estações administradas pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) – Metrorec Recife. Cerca de 300 mil pessoas circulam por dia pelas 29 unidades (14 com terminais integrados), distribuídas entre as linhas Centro, Sul e Diesel.



Há 15 anos, desde que saiu de sua cidade natal, Vitória de Santo Antão na Zona da Mata Sul pernambucana, e se mudou para Jaboatão, o professor Carlos Joaquim Santos, 44 anos, utiliza o trem como principal transporte para a escola onde ensina, no Centro da cidade. Ele tem de estar no trabalho às 9h, mas sai de casa às 5h para evitar a multidão que se espreme na estação de embarque, em Jaboatão Centro, nos horários mais concorridos. “Já caí, machuquei o braço, tive mais de uma camisa rasgada”, enumera. A agonia no sobe-desce do trem parece ter se naturalizado no dia a dia de quem utiliza transporte público. Mas tem quem resista. Em fevereiro passado, uma usuária impetrou um processo contra a CBTU, depois de ser pisoteada na Estação Central. O Judiciário acatou o pedido de indenização por danos morais e materiais, entendendo que o fato ocorreu por causa da superlotação do metrô. A CBTU foi condenada a pagar uma indenização no valor de R$ 20 mil.



O desafio de conseguir lugar para sentar no vagão lidera as queixas dos usuários, seguido pelo atraso das viagens. “Inferno”, “castigo”, “penitência” são palavras exaustivamente repetidas pelos passageiros para descrever a rotina de embarque em horários de pico (das 6h às 8h30 e das 17h às 19h30). “Os problemas são entendidos como algo individual. Sair deles, portanto, demandaria um esforço que nunca é pensado como algo coletivo, algo que pertence à esfera pública, esfera onde o indivíduo se transforma em cidadão”, diz o sociólogo Jornatas Ferreira, professor dos programas de Pós-Graduação em Sociologia e de Inovação Terapêutica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).



“Quando nos defrontamos com um dos inúmeros engarrafamentos que dificultam terrivelmente nossa mobilidade, acreditamos que, se investirmos em uma solução coletiva, estaremos perdidos. Acreditamos que, se invadirmos calçadas e resolvermos nosso problema imediato, tudo estará bem. Amanhã a gente vê o que faz, queremos apenas chegar em casa ou no trabalho. Tendemos a acreditar na força da própria musculatura pra resolver tudo”, exemplifica. “Creio que há mudanças no Brasil, mas sobretudo quando crises surgem, como é o caso da mobilidade urbana, o capital simbólico a que recorremos com mais facilidade é o ‘salve-se quem puder’”.



A superlotação é um dos principais problemas enfrentados pela CBTU, que conta com 40 veículos — 14 para a linha Centro (neste mês, recebe mais um), 8 para a Sul e 3 para a Diesel. Cada um tem capacidade para 1.200 pessoas, mas nos horários mais disputados chegam a transportar 2.000 passageiros. O Centro de Controle Operacional (CCO) é responsável pelo controle de tráfego nas linhas, manutenção e comunicação. Funciona como uma interface do sistema de Controle Automático de Trem (ATC) e possui painéis em LED, além de um sistema de câmeras que monitora as plataformas. O intervalo-padrão entre as viagens é de oito minutos, o que nem sempre é cumprido. Nos horários de pico, cai para quatro minutos e meio. Em grandes eventos, como o Galo da Madrugada, é possível chegar a três minutos de intervalo, não mais. “Passamos por um momento difícil por causa do volume de passageiros que vieram graças às integrações. Tentamos montar estratégias para que as operações sejam o mais bem-sucedidas possível, mas sempre existirão limitações”, diz Claúdio Sena, coordenador do CCO.



De acordo com o gerente regional de operações, João Dueire Costa, uma solução para diminuir a superlotação seria duplicar o número de vagões dos trens (hoje, são quatro), o que demandaria a expansão das plataformas de embarque e desembarque. Se isso acontecesse, a capacidade de cada trem passaria de 1.200 para 2.800 passageiros. Outra opção, a curto prazo, seria a troca de todo o sistema de freagem e tração dos trens, deixando os veículos mais rápidos — e, consequentemente, aumentando o número de viagens por dia.



A modernização da frota antiga está dentro do planejamento da CBTU. Há três meses, um termo de referência foi consolidado junto à sede administrativa do órgão, que fica no Rio de Janeiro, e, agora, passa pela fase de levantamento das especificações técnicas das modificações e levantamento de custo, que pode chegar a R$ 200 milhões. Com a modenização, trens antigos (25) vão alcançar o mesmo padrão de desempenho dos novos, que circulam na Linha Sul. “O mais importante é aumentar a confiabilidade dos veículos, a eficiência energética, melhorar a acessibilidade e modernizar o sistema de informação com o público”, explica Bartolomeu Carvalho, gerente de manutenção. Na fase seguinte, a CBTU solicitará os recursos necessários ao Ministério das Cidades. Não há previsão de quando as mudanças serão implementadas.



O distanciamento entre a administração local e nacional da CBTU representa um dos principais entraves para a melhoria de serviços prestados pelo órgão, aponta Fernando Jordão, especialista em economia dos transportes e professor do curso de Engenharia Civil da UFPE. “A cabeça pensante está fora do Recife. Precisamos de um olhar local, e que a administração estadual compre essa causa, como acontece em São Paulo, onde há um efetivo engajamento entre o município, o estado e o governo federal, que repassa os recursos federais, mas não interfere no gerenciamento local”. Para Jordão, num contexto em que se aborda tanto a mobilidade urbana da cidade, o metrô deveria figurar entre os principais tópicos das discussões. “O problema é que nunca se deu a devida atenção para esse tipo de transporte. Desde a sua implementação, na década de 1980, não houve um estudo para identificar as áreas com maior demanda, limitando o acesso das pessoas que não fazem parte do eixo Jaboatão-Recife”.



Segundo o engenheiro, qualquer cidade com pespectivas de crescimento econômico, como o Recife, precisa de um transporte capaz de atender altas demandas de passageiros, e o único com potencial para isso é o metrô. “Um VLT (veículo leve sobre trilhos), por exemplo, tem 30 anos de vida útil enquanto um ônibus só tem sete, polui mais e opera com uma capacidade três vezes inferior a de um VLT. Precisamos aumentar o número de linhas e ampliar a presença do metrô na cidade”, defende. “As pessoas precisam se posicionar e mostrar que essas mudanças são importantes para a qualidade de vida que tanto almejam”.


Diário de Pernambuco

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