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Créditos: Maria Eduarda Bione/Diário de Pernambuco |
O Brasil escolheu o carro. Governo após governo dedica parte
de sua arrecadação para beneficiar essa indústria. A crise de 2008
provocou uma nova onda de incentivos. Somente no ano passado, a redução
do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para automóveis e o
subsídio da gasolina, uma espécie de “bolsa carro”, somaram R$ 19,38
bilhões. O valor é quase o dobro do montante destinado a melhorar o
transporte público nas cidades: R$ 10,2 bilhões em 2013. Enquanto isso, a
população se espreme em metrôs, trens e ônibus superlotados. Em série
de reportagens multimídia que começa a ser publicada hoje, O GLOBO
percorre as maiores metrópoles do país para ver como anda a mobilidade
urbana para milhões de brasileiros e mostra as consequências da opção
por um Brasil motorizado e individualista.
São 47 milhões de automóveis e 19 milhões de motos nas vias
brasileiras, frota 175% maior que em 1998. Nesse período, a população
brasileira cresceu 28,5%. A cada ano, 3,7 milhões de carros novos
invadem as ruas do país. Cálculos do economista do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho mostram
que a capacidade de produção da indústria triplicou nos últimos 20 anos.
Os incentivos ao carro em 2013 foram maiores que os R$ 14,38 bilhões
previstos para obras da Copa do Mundo e são equivalentes a dez meses do
Bolsa Família.
PARA O GOVERNO, IMPACTO É POSITIVO
A Copa do Mundo e as Olimpíadas ajudaram a diminuir um
pouco esse desequilíbrio. Facilitar o ir e vir das pessoas nos grandes
eventos passou a ter prioridade. E as manifestações de junho de 2013
deixaram claro que o transporte público caro e ruim é capaz de mobilizar
a população a não só pedir preço de passagem menor como exigir serviços
públicos de qualidade. Não era só por R$ 0,20, como diziam as faixas de
protesto. O assunto foi um dos pontos centrais no debate eleitoral.
— Toda obra de mobilidade urbana que se faz já vai nascer
cheia. O esgotamento é tamanho que vai ter demanda sempre — afirma Paulo
Resende, coordenador do Núcleo de Infraestrutura e Logística da
Fundação Dom Cabral.
Desde 2009, os incentivos ao carro somaram R$ 56,4 bilhões —
mais de dois anos de Bolsa Família. Neste cálculo estão as reduções do
IPI, segundo a Receita Federal. Há também a isenção da Contribuição de
Intervenção no Domínio Econômico (Cide), tributo que incide sobre os
combustíveis, e a diferença entre o valor da gasolina no país e a
cotação mundial, segundo o Centro Brasileiro de Infraestrutura. Enquanto
isso, em mobilidade urbana foram investidos R$ 32,6 bilhões no mesmo
período, segundo estudo inédito do economista Cláudio Frischtak,
presidente da Inter.B Consultoria Internacional, que falará sobre o tema
em seminário na próxima sexta-feira na FGV.
E a pressão da indústria automobilística por baixar ainda
mais o IPI este ano e pela manutenção em 2015 do benefício, previsto
para terminar em 31 de dezembro, começou na semana passada, no
lançamento do Salão do Automóvel. As montadoras alegam que estão com os
pátios cheios, mas bateram seguidos recordes de vendas de 2003 a 2012.
No BNDES, a indústria automotiva também foi privilegiada. De
2008 a 2013, os desembolsos para o setor foram de R$ 32 bilhões,
enquanto os projetos de mobilidade urbana levaram R$ 9 bilhões. Segundo o
banco, dois fatores explicam isso: obras de tempo maior com o dinheiro
liberado aos poucos e dificuldade dos estados de estar em condições de
contrair os empréstimos.
— Já nos anos 1990 houve a redução na carga tributária para o
carro popular com mil cilindradas. A tributação no Brasil é mais baixa
que a da Europa e próxima à dos Estados Unidos, o país do automóvel.
Também houve aumento de crédito, que era uma das barreiras para a
população de classes mais baixas comprar carro — diz Carvalho, do Ipea.
O economista não critica o acesso mais fácil ao veículo. A
proporção carro por habitante no Brasil ainda é baixa, dois têm carro a
cada dez habitantes. Na Alemanha, essa relação é de seis para dez. O
problema é a falta de infraestrutura e de transporte coletivo decente
para ser uma alternativa ao carro.
Técnicos do governo justificam os incentivos ao carro pelo
impacto positivo da expansão da indústria na economia, além dos
empregos. O setor responde por 25% do Produto Interno Bruto (PIB,
conjunto de bens e serviços produzidos) industrial.
— Somos dependentes da indústria automobilística há mais de
40 anos. Está na hora de mudar e partir para a indústria de bens
coletivos — diz Frischtak. Mas fontes do governo reconhecem que a indústria tenta
protelar investimentos. Houve pressão para prorrogar a exigência de
airbag e freio ABS em todos os veículos no fim de 2013. As montadoras
ameaçaram demitir se a exigência fosse mantida. O governo chegou a
considerar o adiamento, mas a presidente Dilma Rousseff não cedeu, o que
levou ao fim da fabricação da Kombi e a quase nenhuma demissão naquele
momento.
Para o Ministério das Cidades, não há contradição: “A
política de desoneração do IPI é uma medida econômica que mantém o
mercado aquecido e gera empregos, o que pode caminhar junto com as
diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana”. Segundo o
ministério, os recursos federais comprometidos para a área de mobilidade
urbana, com Orçamento e BNDES, somam cerca de R$ 30 bilhões por ano
desde 2012. Até o início da Copa, segundo o Ministério do Planejamento,
dos 35 empreendimentos de mobilidade urbana previstos no orçamento de R$
7 bilhões, nove foram concluídos (R$ 737,5 milhões) e 11 entraram em
operação parcial (R$ 3,5 bilhões). Os demais migraram para o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC).
INVESTIMENTOS NEM SEMPRE SÃO ADEQUADOS
Dos R$ 50 bilhões do Pacto da Mobilidade Urbana, lançado
pelo governo federal em junho de 2013, durante as manifestações, foram
selecionados mais de cem projetos, no valor de R$ 44 bilhões. O governo
não informa quanto foi gasto até agora.
Marcos Bicalho dos Santos, diretor da Associação Nacional
das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), diz que os pacotes do governo
prometem R$ 143 bilhões à mobilidade urbana, mas até agora foram
investidos algo entre 10% e 15%:
— Precisamos de R$ 400 bilhões em dez anos para atender à demanda. O abandono foi grande.
E os investimentos nem sempre são os mais adequados.
Constroem BRTs, linhas rápidas de ônibus, enquanto a demanda exige trem
ou metrô.
— Nos últimos anos vimos o movimento dos passageiros em
transporte sobre trilhos crescer 10% ao ano, embora a malha cresça
apenas 3% ao ano. Isso explica parte da superlotação — explica Joubert
Flores, presidente da Associação Nacional dos Transportadores de
Passageiros sobre Trilhos e diretor de Engenharia do Metrô Rio,
afirmando que os governos precisam investir para ampliar a capacidade,
diminuir intervalos e expandir a malha.
O Globo
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